Desde que criei o Capitu Vem Para o Jantar, tenho falado muito sobre comida afetiva, aquela que desperta boas lembranças e que aconchega o coração. Aquela que tem aroma de sentimento e sabor inigualável. Ou seja, a comida que amamos. E mais importante: a comida que escancara os nossos privilégios.
Só que tem outra comida que precisa ser debatida. Estou falando da comida que trava a garganta, a comida insegura, a comida que incomoda, a comida inexistente.
Dados publicados na última semana pela pela FAO, ONU, OMS e Unicef, no documento que serve de referência sobre o estado da alimentação no planeta, mostram que a insegurança alimentar no Brasil explodiu entre 2020 e 2022, atingindo mais de 70 milhões de brasileiros.
Estamos falando de uma terrível história que se desenrola em um país que exporta toneladas de alimentos ao mundo todo. (E ainda contrasta com a narrativa do ex-presidente de que a fome não existe no Brasil, né?)
Eu sei, eu sei. Quando a gente pensa em dados como esse, fica difícil dimensionar o tamanho do problema. Sabemos que setenta milhões é um número gigantesco, e por ser tão grande, é difícil entender o que ele representa.
Por isso, é importante nos conectarmos com a história por trás de cada um desses números.
Vi uma entrevista feita com a Lilian Rahal, secretária Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, em que ela diz o seguinte: "A fome no Brasil tem cara. É a de uma mulher negra, mãe solo, com filhos pequenos, morando na periferia de uma grande cidade, com trabalho e moradia precários".
Essa fala me bateu em cheio. Por causa do retrato que ela ilustra em nossa mente. Afinal, conhecemos essa mulher, já nos deparamos com ela muitas vezes em nossas andanças durante o dia-a-dia; já conversamos com ela; ou já fomos elas.
Além disso, é possível que tenha surgido aí na sua mente, assim como aconteceu comigo, o retrato de Carolina Maria de Jesus, moradora da favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, nos anos 1950, passava a maior parte do tempo como catadora de papel e criava sozinha três filhos pequenos. E, mesmo assim, encontrava forças para registrar as suas dores em diários - que foram publicados em 1960 com o nome "Quarto de Despejo: Diário de uma favelada".
Com o seu relato visceral, Carolina nos permitiu vivenciar as agruras e as angústias de uma vida onde a comida era escassa e o desespero era imenso. Sua história nos mostrou como a fome não é apenas uma questão física, é uma dimensão emocional que molda nossas experiências de maneiras profundas.
Ela fala muito sobre comida ao longo do livro porque sonha muito com comida. "A toalha era alva ao lírio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife, despertei", relata ao descrever um devaneio.
Além disso, Carolina anseia pelo dia que poderá dar bacalhau aos filhos, enquanto assiste aos donos de armazém jogando fora quilos do peixe. Como se não bastasse, ainda colocavam creolina para impedir que pessoas revirassem o lixo. É impossível não se emocionar quando os filhos pedem bolo no aniversário, mas ganham polenta. "Quem sou eu para fazer bolo?", indaga ela.
Em sua obra, ela mostrou que mais de sessenta anos depois, a icônica fala “e haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer”, é ainda tão atual.
É por isso que hoje eu quero recomendar a leitura de Quarto de Despejo. Considero esta uma obra essencial para compreender de fato o que significa 70 milhões de pessoas famintas em um país tão próspero como o Brasil.
Manjar do Literato - 1984
De certa forma, o Manjar do Literato desse mês conversa muito com esse assunto.
Afinal, trata-se de uma distopia onde a comida é escassa, insegura ou extinta. (Como se esquecer de Júlia divagando sobre a vontade de um dia ter provado limão? Ou a emoção de Winston ao ver café de verdade pela primeira vez?).
O Manjar do Literato é o clube de leitura aqui do Capitu Vem Para o Jantar, e todo mês temos conteúdos, palestras e receitas que dialogam com grandes obras da literatura. Só que nesse mês será diferente.
Falaremos sobre o que a comida ruim, insegura e ausente pode nos contar sobre uma história. Estou empolgada com o tema e acho que você vai curtir também.
Digo isso porque este foi o mês mais procurado e as vagas já estão acabando. Então corra para garantir o seu lugar.
Espero que esta newsletter te encontre bem.
Nos vemos em breve.
Um beijo,
Denise Godinho