#6 Para se comer como um Mosqueteiro
Ou como Alexandre Dumas escreveu um magnífico tratado sobre gastronomia
O longa-metragem “Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan” chega ao Telecine Play essa semana. É realmente empolgante assistir a mais uma versão desse clássico. Assisti quando ainda estava nos cinemas e, antes de correr para as telonas, decidi reler a obra. E qual foi a minha surpresa ao perceber que “Os Três Mosqueteiros” me fazia salivar.
É que Alexandre Dumas era um apaixonado por gastronomia e podemos entender isso só de ler os seus trabalhos. No romance histórico publicado como folhetim de março a julho de 1844, os heróis D´Artagnan, Athos, Porthos e Aramis estão sempre se lambuzando com fascinantes guisados na brasa e entornando centenas de garrafas de vinho. Bebida, aliás, que era um elixir para acalmar as dores da alma e as dores do corpo. Como a vez que D´Artagnan preparou um bálsamo com azeite, vinho e alecrim para curar as próprias feridas de combate; e a vez que Athos se trancou em uma Adega e se orgulhou de beber mais de cento e cinquenta garrafas sozinho.
A conexão entre literatura e gastronomia presente na obra de Alexandre Dumas fica ainda mais interessante quando pensamos que o autor também escreveu, imagina só, um livro de receitas. Não, me desculpe, eu reduzi imensamente a importância da obra. Dumas, na verdade, escreveu um extenso tratado gastro-literário que se posicionou como um manifesto do bom gourmand que ele era. É um compêndio excepcional sobre a paixão pela gastronomia e, mais importante, sobre a história da alimentação daquele tempo.
O “Dictionary of Cuisine” (Dicionário da Culinária, em tradução livre) está recheado de anedotas, memórias, histórias curiosas e receitas. Falarei sobre as receitas mais adiante porque elas merecem um parágrafo só delas. No momento, trago uma citação do escritor sobre o real significado do jantar:
“Não é suficiente comer. Para jantar, deve haver uma conversa diversificada e calma. Deve brilhar com os rubis do vinho entre os pratos, ser deliciosamente suave com a doçura da sobremesa e adquirir verdadeira profundidade com o café.”
Apesar de já ter escrito clássicos como “Os Três Mosqueteiros” e “O Conde de Monte Cristo”, publicações que o consagraram como um dos maiores escritores do século 19, Alexandre Dumas considerava o livro de culinária como a sua grande obra-prima ou, como ele mesmo a descreveu, “um travesseiro para a velhice”. Faz sentido que Dumas amasse tanto o Dicionário de Culinária, afinal, a obra nasceu do coração e do estômago.
No entanto, a história por trás da sua publicação não é tão alegre como as conversas dos comensais ao redor de uma mesa. Em 1870, o manuscrito estava pronto para ser publicado, quando os editores interromperam a empreitada por conta da eclosão da Guerra Franco-Prussiana. Alexandre Dumas faleceu no mesmo ano por conta de um derrame vascular e nunca viu o livro ganhar vida.
Uma passagem curiosa, logo nas primeiras páginas, é quando Dumas explica os três tipos de apetite. Segundo ele, o primeiro tipo é aquele que nasce da fome, quando qualquer alimento basta para saciar um bucho vazio. O segundo tipo é aquele que o autor chama de Apetite Despertado, ou seja, que surge quando não se tem fome, mas um alimento suculento aparece no momento certo, despertando as papilas gustativas. E o terceiro tipo de apetite é um que conheço bem. É aquele insaciável, que mesmo quando já nos sentimos satisfeito pelos pratos principais, percebemos que sempre há espaço para uma sobremesa e para a continuação do banquete.
E como já estou com água na boca, lembrei que prometi falar sobre as receitas. O nome da obra já dá conta de explicar que se trata de um dicionário. Por isso, os capítulos são divididos em ordem alfabética. Desde A de Absinto até Z de Zest (aquela raspinha da casca de alimentos cítricos, como laranja e limão). As receitas são as mais variadas possíveis, e vão de Sopa de Cerveja para ser servida com torradas até o Perdiz à la Bourguignonne que faria até o mais sóbrio dos mosqueteiros se esbaldar.
Mas tem uma receita que me chamou atenção. Uma salada. Em uma edição inglesa de 1990 do “Dictionary of Cuisine”, traduzida e editada por Louis Colman, eu me diverti com uma anedota de Dumas sobre esta irresistível salada. O autor-cozinheiro costumava preparar tal receita nos jantares que servia para amigos. Em uma ocasião, um dos convidados não conseguiu comparecer, mas não deixou de mandar um empregado buscar a sua porção, em pleno temporal, protegendo a iguaria com um guarda-chuva.
Dumas explica que isso aconteceu porque sua salada não era apenas uma salada. Era uma saborosa iguaria preparada com fatias de beterraba, aipo, trufas, rabanetes e batatas cozidas. Para temperar, ovos, azeite, cerefólios, atum, anchovas, mostarda, soja e pepinos em conserva. Quando a salada já estava temperada, ele a polvilhava com uma pitada de páprica.
O curioso é que, ao contrário do seu criador, as criaturas D´Artagnan, Athos, Porthos e Aramis pouco se interessavam por legumes ou vegetais. Em uma passagem divertida de “Os Três Mosqueteiros”, Aramis manda buscar uma omelete com espinafres. É uma sexta-feira e ele decidiu se reconectar com a religião depois de ser expulso do seminário e escolher a farda de mosqueteiro. Por isso, naturalmente, jejua às sextas-feiras se abstendo de carne. No entanto, enquanto o lacaio se aproxima com as iguarias vegetarianas no prato, Aramis recebe boas notícias em uma carta de amor. “Foge, desgraçado!”, diz ele ao ver o lacaio:
“Volte pelo mesmo caminho e leve esses horríveis legumes e esse detestável omelete! Peça uma lebre recheada, um capão gordo, uma perna de cabrito assada e quatro garrafas de Borgonha velho”.
Como vejo que me estendi, eu encerro a crônica de hoje lamentando que o “Dictionary of Cuisine” de Alexandre Dumas nunca tenha sido traduzido e publicado no Brasil. Espero plantar uma semente para que editoras nacionais se interessem pela obra no futuro, quem sabe?
E já que prosa boa não é boa se não for alimentada, deixo aqui a minha adaptação mais acessível daquela receita de Dumas, digna de se comer até em tempestades. (e prometo levá-la em vídeo lá para o Instagram Capitu Vem Para o Jantar).
A Salada Irresistível de Alexandre Dumas
6 porções
Ingredientes
2 beterrabas cortadas em rodelas
1 aipo cortado
3 batatas cozidas cortadas em pedaços médios
4 rabanetes picados com suas folhas
Para o molho:
2 colheres de sopa de mostarda Dijon
1 xícara de pepino em conserva picado
1 lata de atum ralado
1 lata de anchova macerada
3 ovos cozidos picados
Sal a seu gosto
Azeite a seu gosto
Salsa ou cerefólios a seu gosto
Páprica para o toque final
Modo de Preparo
Coloque as beterrabas, o aipo, as batatas e o rabanete com as folhas em uma tigela. Em outra travessa, adicione os ingredientes do molho e incorpore-os até a mistura ficar na consistência de pasta. Coloque a pasta na primeira travessa e mexa delicadamente para não machucar os legumes. Por fim, polvilhe uma pitada de páprica por cima. Prepare a salada duas horas antes de servir.
Temos uma comunidade no WhatsApp!
Ah, aproveito que você tá bem alimentado para contar que criei um grupo no WhatsApp para a comunidade. Trata-se de um espaço aberto para que boas conversas aconteçam e a gente possa trocar dicas de filmes, livros e receitas.
Vale avisar que como é um grupo aberto, o volume de mensagens pode ser alto. Então, se decidir entrar, sinta-se à vontade para silenciar o grupo para que não receba tantas notificações. Dessa forma, você pode acessar o grupo quando se sentir disponível para checar as novidades.
Quer participar?
Boa leitura, bom apetite e até a próxima! 🖤